Em um mundo repleto de distrações e ruídos constantes, a quietude tornou-se uma raridade. Foi em um contexto igualmente turbulento — o século XIII, na Pérsia — que o poeta e místico sufi Jalal ud-Din Rumi teceu uma obra capaz de atravessar séculos, culturas e fronteiras, iluminando o caminho da alma humana.
Mais do que um poeta, Rumi foi um verdadeiro cartógrafo do espírito. Filho de um teólogo e mestre espiritual, herdou o conhecimento das escrituras, mas sua grandeza está em ter ultrapassado o dogma. Com maestria, entrelaçou o divino e o humano em uma tapeçaria poética que não convida apenas à leitura — mas à experiência viva do sagrado.
O Convite ao Invisível: A Porta que o Sono Abre
Entre seus muitos poemas, “A Viagem do Sonho” é um convite à contemplação do mistério que acontece todas as noites: a travessia do sono. Para Rumi, o sonho não é uma fuga da realidade, mas uma libertação ativa da alma.
Com a oração da noite, quando o sol declina e se esconde, fecha-se a vida dos sentidos e abre-se o caminho ao não-visto.
Logo nos primeiros versos, o poeta inverte o sentido comum da experiência: o pôr do sol deixa de ser um fim e se torna um começo. O fechar dos sentidos físicos — nossa bússola no mundo material — abre espaço para uma percepção mais sutil. Ao silenciarmos o barulho do mundo externo, começamos a ouvir a sinfonia do mundo interior.
Pradarias da Alma: Onde o Espírito Encontra seu Lar
Nesse estado de entrega e receptividade, a consciência é guiada pelo “anjo do sono” — imagem que simboliza o movimento natural da alma rumo às dimensões sutis do ser.
Para além do espaço, em pradarias transcendentes, que cidades, que jardins ele nos mostra! …É como se habitasse desde sempre essas paragens. Já não recorda a vida na terra, nem sente cansaço ou tristeza.
Aqui se revela o coração da sabedoria sufi de Rumi: o sonho é uma pátria espiritual, um retorno temporário ao lar da alma. Enquanto o corpo repousa, o espírito reconhece sua origem divina. As tristezas, o peso das preocupações e as ilusões da vida material se desfazem, e o ser experimenta o estado puro de presença e serenidade.
Sob a ótica da Psicologia Analítica de Carl Jung, essa jornada onírica reflete o encontro com o Self— o centro da psique e símbolo da totalidade. As “pradarias” e “jardins” são imagens arquetípicas de um processo de cura e integração, que acontece longe da vigilância do ego.
O Despertar que o Sonho Oferece: Contemplação como Caminho
A grande mensagem de “A Viagem do Sonho” não é que devamos viver dormindo, mas que aprendamos a trazer a qualidade do sonho para a vigília. Rumi nos convida à contemplação — não como passividade, mas como um ato de profunda presença e escuta interior.
Fechar, por um instante, as “vias dos sentidos” e sintonizar-se com o “caminho do não-visto” é abrir espaço para a intuição e o silêncio criativo da alma. É nesse estado que nos reconectamos com o que é essencial — o que está além das demandas, identidades e ruídos do cotidiano.
A poesia sufi de Rumi transcende religiões e dogmas porque fala de algo universal: o anseio da alma por liberdade, repouso e sentido. Não se trata de negar o mundo, mas de encontrar, dentro dele, uma fonte tão profunda de paz que, ao retornarmos à vida diária, possamos fazê-lo com o coração mais leve — ainda que por um breve instante — “libertos de toda a opressão”.
A Jornada Interior: O Chamado da Alma
Em tempos de cansaço coletivo e desconexão, “A Viagem do Sonho” ressoa como um lembrete atemporal: a mais profunda das viagens começa quando fechamos os olhos e ousamos explorar os infinitos territórios dentro de nós.
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A Viagem do Sonho
Com a oração da noite, quando o sol declina e se esconde, fecha-se a via dos sentidos e abre-se o caminho ao não-visto
O anjo do sono conduz então os espíritos como o pastor o seu rebanho. Para além do espaço, em pradarias transcendentes, que cidades, que jardins ele nos mostra!
Quando o sono nos rouba a imagem do mundo, o espírito contempla mil formas e maravilhas. É como se habitasse desde sempre essas paragens. Já não recorda a vida na terra, nem sente cansaço ou tristeza.
O coração liberta-se por inteiro do peso do mundo, de toda a opressão, e já nem percebe os cuidados que lhe são dedicados.
Jalal ud-Din Rumi
REFERÊNCIA
RUMI, Jalal ud-Din. Poemas Místicos: Divan de Shams de Trabiz.Tradução de José Jorge de Carvalho. 03 ed. São Paulo: Attar Editorial, 2020.